Rogério Caboclo, presidente da Confederação Brasileira de Futebol e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Carolina Antunes/PR
Copa América e outros torneios continentais acirram antiga rivalidade entre Globo e SBT, que acompanham a chegada do streaming no esporte
Desde a metade do século passado, assistimos à transformação do futebol em uma indústria do espetáculo. A própria inserção da televisão marcou um novo mundo de possibilidades para o esporte, que doravante permaneceria dependente dessa relação, estremecida atualmente com a chegada do streaming (tecnologia de transmissão de dados pela internet). Nas últimas semanas, a mudança de sede da Copa América para o Brasil durante a pandemia de Covid-19, após as negativas de Colômbia e Argentina, demonstrou como se dá esse fetichismo do futebol, enquanto mercadoria.
Duramente criticada e com ameaças de boicote por jogadores e comissão técnica da Seleção Brasileira, a autorização do governo federal ao torneio, em menos de 24 horas após o pedido da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), revela uma trama de vínculos e esquemas, no mínimo, questionáveis entre Estado, empresas de comunicação e confederações. Os conflitos e as alianças políticas que estão por trás da disputa narrativa envolvendo a realização deste megaevento se confundem com a própria história do futebol e da mídia no país.
Enquanto o esporte bretão atrai interesse econômico de gigantes da comunicação, a receita advinda dos direitos de imagem é fundamental para a sustentabilidade dos clubes, sobretudo onde há poucas formas de obter rendimentos. Em análise financeira realizada pelo Banco Itaú BBA, constatou-se que 45% da renda dos times da Série A do Campeonato Brasileiro, no ano de 2020, veio da TV, com queda brusca nas receitas de bilheteria e sócio-torcedor, além de diminuição em 7% na venda de atletas, que representa ainda um quarto do total arrecadado na elite nacional.
Diante da proibição do público nos estádios, o relatório evidenciou a importância de boas estruturas e gestões para maior fôlego neste período. Acumulando títulos, Flamengo e Palmeiras reuniram juntos 25% dos rendimentos, sendo que no rubro-negro carioca a participação da televisão caiu para 39%. Já o Corinthians, envolvido em dívidas e problemas administrativos, viu aumentar a dependência desse recurso para 53% dos ganhos.
Ampliando a escala de análise, um estudo da empresa de consultoria Deloitte mostrou que as receitas combinadas dos 20 maiores clubes do mundo (todos na Europa) apresentaram queda de 17% no que diz respeito ao faturamento nos estádios e 23% em direitos de transmissão, com leve aumento de 3% nas receitas comerciais. Esses dados podem ser explicados por dois motivos: 1) quebras de contrato, adiamentos e paralisações de campeonatos no meio da temporada; 2) ausência de público nos estádios, o que pode ter impulsionado o e-commerce.
Para além dos números, os impactos da pandemia do novo coronavírus no futebol são incertos. Entretanto, o que se vislumbra é o agravamento de uma estrutura social em que o esporte está inserido. Para Alysson Mascaro, a dinâmica da crise, evidenciada atualmente, é resultado do modelo de produção das relações sociais, pautado na condição desigual entre as classes de sustentar materialmente suas existências, sendo o próprio capitalismo, a crise. Neste contexto, o futebol, cooptado pela indústria e o mercado financeiro, torna-se refém dos meios de produção (e comunicação).
Todo esse processo se dá no período técnico-científico-informacional da história, onde a informação adquire papel central para a organização do espaço (SANTOS, 2017). Segundo Milton Santos, a arquitetura da globalização, caracterizada pela convergência da técnica e do tempo, bem como pela emergência de uma mais-valia universal, possibilita aos agentes hegemônicos alcançarem a totalidade do território, exercendo influência sobre todos os lugares.
A partir da internacionalização dos capitais, alocada em um discurso totalitarista de globalização[1], o futebol se transforma, junto às relações sociais, à medida que ambos são inseridos no processo de acumulação capitalista. Buscamos, a partir das disputas na mídia pelos direitos de transmissão, entender os mecanismos que sustentam a política neoliberal e o avanço das tecnologias de comunicação no esporte das multidões.
A revolução do futebol pela TV e o monopólio da Globo nos direitos de imagem
A crescente participação da televisão no futebol, entre os séculos XX e XXI, o colocou como uma valiosa mercadoria para a sociedade de consumo, sendo a primeira transmissão ao vivo via satélite, na Copa do Mundo de 1970, um marco para a imprensa global. É a partir desse momento que se concretiza a simultaneidade do esporte, enquanto produto midiático, em diversos continentes.
Não obstante, foi no período de 1960 e 1970 que as receitas oriundas de propagandas e patrocínios de grandes corporações começaram a ter impacto nos clubes. Até o início da década de 1980, os principais ganhos eram obtidos a partir da “venda de ingressos, comércio de comidas e bebidas, patrocínios locais, empréstimos bancários, recursos diretos obtidos por intermédio do governo local, nacional e subsídios indiretos pelo uso gratuito de estádios públicos (…)” (MOTTA, 2020, p. 28)[2].
O neoliberalismo surge, neste contexto, com uma promessa de equilibrar as finanças, sendo a televisão uma importante propulsora dos clubes no exterior. O que vimos, porém, foi um aumento da submissão dos times nacionais aos estrangeiros, bem como do abismo entre aqueles de maior e menor expressão. Em uma perspectiva regional, perderam as cidades médias e do interior, em favor das grandes capitais.
A fundação da liga inglesa, ou Premier League[3], é fulcral para compreender esse movimento internacional do esporte. Em virtude dos aportes financeiros de grandes corporações e do acordo de direitos televisivos com a BSkyB, os autodenominados ‘Big-Five’ da Inglaterra (Arsenal Football Club, Everton Football Club, Liverpool Football Club, Manchester United Football Club e Tottenham Hotspur Football Club) pressionaram a Football Association para viabilizar a criação de uma liga que atendesse aos seus novos interesses comerciais, o que ocorreria no ano de 1992.
No Brasil, popularizado pelas narrações de Fiori Gigliotti, Januário de Oliveira, Osmar Santos e outros ícones do rádio, o futebol chegou ao posto de principal esporte do país. Ainda pouco presente nas transmissões da época, a televisão viria a consolidar-se como um importante meio de comunicação, sobretudo, a partir dos investimentos estatais, que impulsionaram o desenvolvimento de uma ampla rede de telecomunicações e tornaram mais acessíveis os televisores, com o intuito de promover a integração do território nacional.
Em vista do funcionamento de empresas estatais como Contel, Telebrás e Embratel, o ramo televisivo assegurou sua presença em todo o país (LEAL, 2009). Dentre os grupos privados, a rede Globo passou a sobressair perante as demais justamente em decorrência de ser pioneira em muitos municípios brasileiros. A emissora carioca viu expandir suas afiliadas após uma ótima relação com os militares – conforme evidenciado no caso da campanha midiática liderada por Pelé na Seleção e utilizada pelo governo Médici durante a Copa de 1970.
Amparado sob diversos incentivos, o grupo Globo usufruiu de negociações ilícitas e do monopólio midiático para adquirir vantagens na transmissão esportiva, uma vez que o alcance nacional garantia retorno financeiro às competições (FONSECA, 2014). Todavia, este interesse nas exibições futebolísticas parece dar sinais de decaimento. Adaptando-se a uma nova forma de comunicação, por meio da internet, onde tem a possibilidade de converter a enorme audiência televisiva em uma ampla rede de streaming, a empresa tem optado por garantir lucro com o sucesso de programas consagrados e baratos, como as novelas e o reality show Big Brother Brasil.
Como pano de fundo da competição comercial em torno do futebol, a briga entre as famílias Marinho e Abravanel se estende para o rompimento institucional da primeira e o proselitismo político da segunda em relação ao governo federal. Não à toa, o atual Ministro da Comunicação é genro de Silvio Santos, o que demonstra a corrompida relação entre Bolsonaro, CBF e grande mídia. O interessante é que a posse dos direitos de transmissão não tem garantido a liderança na audiência para a emissora paulista. As partidas da fase de grupos da Copa América ficaram em segundo lugar no IBOPE, perdendo para a programação da Globo, que concentra suas atenções no esporte em torneios nacionais e no campeonato europeu de seleções, a Eurocopa, exibida na TV por assinatura.
Após quase trinta anos da reformulação da liga inglesa, a adesão desenfreada à política de Margaret Thatcher apresenta reflexos marcantes no futebol e na imprensa brasileira. Se por um lado, permanecem os mesmos agentes proprietários da mídia e no controle da seleção e dos clubes de futebol, o favorecimento da entrada de capital externo e o avanço das tecnologias de comunicação transformam o cenário dos direitos de imagem continuamente. Infelizmente, não há bônus significativo para o torcedor.
Novas possibilidades para a exibição de futebol: o stream e as plataformas digitais
A chegada do streaming no futebol, apesar de muito associada aos e-games, não é recente. No ano de 2012, o extinto Esporte Interativo lançava sua plataforma de conteúdo online “EI Plus”, que permitia assistir toda a programação da TV a qualquer momento na internet. Apresentava-se ao público uma via alternativa de acessar os conteúdos com valores mais acessíveis. Depois de quase dez anos desta iniciativa e a venda do EI para a Turner, canal americano pertencente à AT&T, houve uma explosão destes serviços, acirrando a disputa por catálogos atrativos que justifiquem os preços sugeridos.
Em conjunto com o avanço do streaming, acompanhamos nos últimos tempos um crescimento absurdo das plataformas digitais. Conforme divulgado no podcast do Intervozes, “Levante sua voz”, um levantamento do jornal New York Times mostrou que, em 2020, Amazon, Apple, Google, Microsoft e Facebook faturaram 1,2 trilhão de dólares, 25% a mais do que elas lucraram em 2019. O que essas empresas vendem em uma semana, o McDonalds vende em 1 ano inteiro.
Não demorou, portanto, para o futebol entrar na mira dessa batalha digital, sendo também uma forma alternativa de receita. Além do empenho nas redes sociais, clubes brasileiros e estrangeiros passaram a transmitir algumas de suas partidas em plataformas. Obviamente, essas experiências não agradaram a mídia tradicional, favorecida em outras épocas pela Lei Pelé, que ajudou a garantir por anos o monopólio da Globo no futebol brasileiro.
Em 2018, o serviço “liveFC” se tornou responsável pelas transmissões digitais da Copa do Nordeste, após o fim do contrato com o Esporte Interativo. Campeonatos estaduais também se aproximaram do streaming, como o torneio catarinense, que era transmitido pela “FC Play”, uma plataforma do grupo Netshoes. A empresa brasileira possui um histórico de exibição de outras modalidades, como o futsal, e tem investido também nos e-sports.
O grupo Globo não ficou de fora e também se direcionou para a internet, empenhando grandes investimentos na veiculação e produção de jogos eletrônicos, como o “Cartola FC”, um fantasy game do campeonato brasileiro, além de oferecer o “Premiere FC”, principal serviço de transmissão esportiva por demanda do país, através de plataformas digitais. Anteriormente, o serviço era oferecido somente como anexo de pacotes na TV a cabo.
No ano de 2019, a DAZN anunciou sua chegada em território brasileiro com uma gama de competições, entre elas: FA Cup, Ligue 1 (campeonato francês), Série A (campeonato italiano), Copa Sul-Americana e a terceira divisão do Brasileirão. Tratava-se de um movimento estratégico da empresa em adquirir torneios com presença de clubes com grande torcida. Apesar de renunciar em 2020 de boa parte do catálogo, devido a problemas financeiros relacionados à pandemia, a empresa inglesa manteve a transmissão do campeonato nacional.
Recentemente, foi a vez da HBO Max anunciar que, a partir da temporada 2021/22, os jogos da UEFA Champions League estarão disponíveis no serviço criado com a fusão da Warner e Discovery, pertencentes à mesma AT&T. Até então, as partidas da Liga dos Campeões da Europa eram transmitidas no Facebook e no canal fechado Turner. No mesmo caminho, a Disney anunciou que, a partir de Agosto deste ano, toda a programação ao vivo da ESPN estará no serviço de streaming Star +, ambiente complementar ao Disney+.
Em conformidade à movimentação das plataformas, um levantamento publicado em 2019 pela App Annie mostrou que o Brasil é o 6° maior consumidor de streaming de filmes e séries do mundo. Em razão da pandemia e das restrições de circulação, houve ainda um aumento significativo de assinantes destes serviços. De acordo com o painel TIC Covid-19 do CETIC/NIC.br, 49% dos usuários de internet no país trabalhavam remotamente e 72% buscavam informações relacionadas à saúde.
Em outra importante pesquisa (TIC Domicílios 2019) elaborada pelo órgão ligado ao Conselho Gestor da Internet no Brasil (CGI), é perceptível a falta de acesso à internet para boa parte da população. Das 134 milhões de pessoas usuárias de internet no país, 58% acessam a rede exclusivamente pelo celular. Na área rural, esse índice sobe para 79% e entre as classes D e E, para 85% (Cetic/NIC.br). Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) mostram que 55% dos acessos móveis no país se dão por planos pré-pagos, muitos deles com pacotes básicos de dados.
Em meio à digitalização do cotidiano devemos atentar para as gritantes desigualdades sociais e espaciais presentes nos territórios, cujos elementos estruturais foram ressaltados na conjuntura pandêmica. Qual deve ser, então, a resposta da mídia tradicional em virtude do rápido avanço dos serviços de streaming e das plataformas digitais? A transmissão do futebol será fragmentada ou haverá um reforço da concentração na mídia? Torcedores serão beneficiados com a diversidade de canais ou prejudicados por conta das barreiras de acesso e pagamento?
É importante ressaltar que as ações dentro do meio futebolístico não estão dissociadas da totalidade social. Ao evidenciar a inserção da televisão e da internet na dinâmica do esporte do povo, partimos de uma escala da ação (SILVEIRA, 2004), relacionada ao cotidiano vivido. Os meios de comunicação geram um conflito local ao trazer nova dinâmica aos clubes, levando alguns a outro patamar enquanto a maioria permanece no ostracismo.
Podemos inferir, portanto, que a escala de ação é resultado da disputa de diversas forças pela apropriação do espaço. Deste conflito territorial, emerge a escala do império, responsável por dar nova funcionalidade aos lugares, em benevolência da totalidade vigente. Retomando as contribuições da geógrafa Maria Laura Silveira (2004), a escala do império é um limite normativo, material e organizacional, neste processo de totalização, relacionada ao tempo objetivado, empiricizado.
Em síntese, os eventos do futebol-negócio, aqui evidenciados, são resultados de interesses diversos, mas guiados sobretudo por agentes hegemônicos. Elucidar essas contradições é salutar a compreensão de que o futebol não está deslocado da realidade social. Além disso, vislumbra-se que apesar de a televisão ter tomado o posto de principal agente imperador das mudanças estruturais no esporte, movimentos em voga, sobretudo na internet, a afastam cada vez mais dessa centralidade.
Autores: Caio Bernardo Gomes, Fernando Chamone, Iago Vernek Fernandes, João Lucas Soares Silva, Jonathan Ferreira e Leandro Luís Lino dos Santos
[1] Vale destacar, que o termo globalização teve sua difusão pela imprensa financeira (SWYNGEDOUW, 2004). De acordo com Santos (2001, p. 18), essa denotação carrega a existência de três mundos em um só: a globalização como fábula (um mundo de possibilidades), como perversidade (mundo como ele é) e por uma outra globalização (como ele pode ser).
[2] Sobre essa mudança, Luciano Motta (2020, p. 28) em seu livro “O mito do clube-empresa”, explicita o seguinte: “ [o] modelo denominado SSL (spectators-subsidies-sponsors-local), foi substituído, devagar e em diferentes momentos em cada país, pelo media-corporation-merchandising-markets, não só em função da ascensão de novas formas de obter receitas, mas também muito em decorrência da assunção de novos administradores que promoveram uma integração vertical, fruto de maior sinergia gerada pelo intercâmbio entre empresas e clubes”
[3] A liga com maior alcance financeiro e midiático, dentre os 10 clubes mais valiosos do mundo, cinco pertencem a ela (Manchester United, Manchester City, Liverpool, Tottenham Hotspur e Chelsea). (DELOITTE, 2020).
Referência
DELOITTE. Bullseye Football Money League 2020. Sport Business Group. Manchester, 2020.
FONSECA, Venilson Luciano Benigno. Lugares e territórios na cultura do futebol brasileiro. 2014.
LEAL, Plínio Marcos Volponi. Um olhar histórico na formação e sedimentação da TV no Brasil. VII Encontro Nacional de História da Mídia, 2009.
MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.
MOTTA, Luciano de Campos Prado. O mito do clube empresa. Belo Horizonte: Sporto, 2020. 392 p
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. 7. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. 174 p.
SILVEIRA, Maria Laura. Escala geográfica: da ação ao império? Revista Terra Livre. V. 2, n. 25. Goiânia, 2004.
FERNANDES, Iago Vernek. et al. As disputas na mídia e os direitos de transmissão do futebol no Brasil. Le Monde Diplomatique, 2021. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/as-disputas-na-midia-e-os-direitos-de-transmissao-do-futebol-no-brasil/>.