Divisão de recursos das transmissões gera desigualdade na competitividade do futebol brasileiro
Antônio Bandeira de Melo Carvalho Valle
LUDOPÉDIO (ARQUIBANCADA) v. 180, n. 12 / 12 de junho de 2024
Publicado originalmente em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/o-impacto-dos-direitos-televisivos-no-futebol-brasileiro/
O futebol se tornou uma indústria que, segundo a FIFA, movimenta quase 300 bilhões de dólares por ano. Uma parte significativa desse movimento se refere ao faturamento dos clubes, alguns deles portadores de receitas bilionárias. São várias as suas fontes, sendo as principais: patrocínios, venda de ingressos (incluindo sócio-torcedor), merchandising, transferências de jogadores e direitos de imagem. Esta última tem cada vez mais importância na receita dos clubes, ao mesmo tempo em que gera grande desigualdade no esporte e impacta a competitividade dos campeonatos.
Em alguns casos, como no do Flamengo, a projeção é de que 24% do faturamento do clube, o que equivale a R$ 279 milhões, de um total de R$ 1,145 bilhão, virá dos direitos de transmissão em 2024, o que corresponde a seis vezes mais do que o América-MG, último colocado do Campeonato Brasileiro, faturou em 2023 com suas transmissões. Para Iago Vernek, coordenador do Observatório de Transmissões de Futebóis e associado do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, a priorização dessa fonte de receita faz com que alguns clubes tenham acesso a uma receita gigantesca enquanto outros recebem muito pouco. “Isso tem a ver com audiência, obviamente os clubes de maior torcida vão ter maior audiência e isso vai impactar na distribuição das receitas, mas, principalmente, tem a ver com o modelo de distribuição que a gente tem no Brasil hoje, que afeta muito a competitividade. Então, você tem aqui no Brasil uma situação bastante desigual, em que alguns poucos clubes ficam se revezando ali na ponta”.
A importância dessa fonte de renda para os clubes é relativamente nova no esporte, cujas regras básicas surgiram há 160 anos, em 1863. Se por muitos anos os ingressos eram praticamente toda a fonte de renda dos clubes, o jornalista esportivo Mauro Beting explica, em entrevista para essa matéria, que “desde o final dos anos 80 e cada vez mais os direitos de transmissão no faturamento dos clubes são essenciais”.
Para Vernek, a importância das transmissões para os clubes está ligada com a própria história dos meios de comunicação de massa, tendo como marco a transmissão da Copa do Mundo de 1970, quando uma partida foi televisionada, pela primeira vez, em cores. Ele ressalta ainda que essa fonte de receita só passa a ser relevante para os clubes quando a ideia de que a transmissão televisiva diminuía o público do estádio deixa de ser dominante. “Teve uma percepção, principalmente depois de uma crise do capitalismo entre 1970 e 80 no Brasil, de que era possível explorar esse capital simbólico, que é a transmissão de futebol ou outros eventos culturais de entretenimento, sem que isso prejudicasse a receita gerada nos estádios”.
Hoje, para Beting, o futebol brasileiro não consegue viver sem os direitos de transmissão por TV. O jornalista acredita, no entanto, que esses valores não deveriam representar tanto para os clubes como, de fato, representam. “Mas é culpa da falta de organização, planejamento e capacidade dos clubes e do próprio mercado”, diz o jornalista.
Fonte: Freepik
A divisão dos direitos de imagem no Brasil
O montante de recursos recebido por cada time, no Brasil, tem a ver com vários fatores. Em primeiro lugar, a quantidade de campeonatos em que os times participam. O Flamengo, por exemplo, participou em 2023 de sete competições, e cada uma gerou direitos de transmissão. Em segundo lugar, do valor de direitos de transmissão geral de cada campeonato, uma vez que os campeonatos têm capacidade diferentes em atrair interesse dos meios de comunicação. Em terceiro lugar, das formas de distribuição dos direitos. Cada campeonato tem sua forma de distribuição, levando a uma maior ou menor concentração desses recursos em um número reduzido de times, o que pode ter impacto na própria competitividade do campeonato.
Comecemos pelos Estaduais. Conforme Vernek, a diferença dos campeonatos estaduais aumenta a desigualdade entre as rendas dos clubes. Enquanto alguns campeonatos têm uma receita grande, como o Paulistão, cuja receita chega a 40 milhões para Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos, a grande maioria dos estaduais tem receitas de transmissão muito pequenas, chegando a nem existirem em alguns estados. Então, alguns clubes ficam sem acesso a uma renda importante.
Além disso, mesmo no Campeonato Brasileiro, no qual participam times de quase todas as regiões, a divisão é desigual. No Brasileirão de 2023 a divisão dos direitos televisivos, referentes às TVs abertas e fechadas, foi feita da seguinte forma: 40% foram divididos igualitariamente entre todos os participantes, 30% relativos à premiação de acordo com a tabela de classificação e 30% de acordo com o número de jogos transmitidos. Nesse modelo, 60% dos direitos podem se concentrar nas contas bancárias de poucos times, podendo causar um desequilíbrio para o campeonato. Ano passado, o Flamengo, time que mais faturou com os direitos televisivos (R$ 275,2 milhões) recebeu da Globo, detentora exclusiva dos direitos de transmissão, 662% a mais do que o América-MG (R$42,8 milhões), o segundo clube que menos recebeu. O Atlhetico-PR foi quem menos recebeu da empresa, mas não é considerado aqui por possuir outro tipo de contrato, recebendo direitos de imagem apenas da TV aberta.
Beting critica essa distribuição de valores desigual. “Futebol não é banco imobiliário, ou seja, não é quem mais tem dinheiro que ganha, mas evidentemente, como em outros campos de atividade humana, o dinheiro não traz felicidade, mas manda comprar, ou manda trazer, ou traz mais facilidades, então o dinheiro de televisão ou de direitos de transmissão de imagem discrepantes gera um campeonato desequilibrado”. O jornalista acrescenta que isso é prejudicial ao futebol. “Isso ninguém pode querer. Então no máximo que você puder equilibrar, no máximo que as grandes torcidas, grandes times, grandes audiências, grande poder econômico e político esportivo puderem fomentar e equilibrar o esporte melhor”.
No último Campeonato Brasileiro, disputado com 20 clubes, os seis times que mais faturaram com transmissão (Flamengo, Corinthians, Palmeiras, Grêmio, Atlético-MG e Botafogo) receberam 49,2% de todo o dinheiro distribuído pela Globo. Nos últimos dez Campeonatos Brasileiros, apenas cinco times foram campeões, dos quais, quatro (Flamengo, Corinthians, Palmeiras e Atlético-MG) estão na lista dos que mais receberam em direitos televisivos, citada acima. Além disso, se analisarmos as últimas tabelas do Brasileirão, há um padrão entre os times que terminam no G6, que são aqueles que se classificam para a Libertadores, principal competição do futebol sul-americano. Nas últimas cinco edições de Libertadores, incluindo 2024, três times (Flamengo, Palmeiras e Atletico-MG) participaram todos os anos do torneio continental. Nesses mesmos cinco anos, no mínimo 30 vagas foram reservadas para clubes brasileiros. Ainda assim, apenas 14 times brasileiros participaram da competição. Entre esses 14 times, nove disputaram três vezes a competição, dois duas vezes e três apenas uma vez. Esses dados mostram o pouco revezamento que há no topo do maior torneio nacional, como disse Vernek, e mostram que a divisão dos direitos de transmissão impacta a competitividade dos campeonatos. Com o passar dos anos e a acumulação do dinheiro ganho, o Brasileirão tende a ficar ainda mais concentrado e desequilibrado.
Aqui vale ressaltar que um ponto fora da curva nessas análises é o Corinthians. O alvinegro paulista, é o segundo clube que mais fatura com direitos televisivos, mas nos últimos anos a receita não tem refletido no desempenho esportivo do clube. Beting aponta que “desde 2013, o Corinthians começou a se perder, inclusive com a construção do Estádio Itaquera, hoje a NeoQuímica Arena. O time possui contas impagáveis que nem os direitos de transmissão têm conseguido resolver.” Isso se explica porque as receitas do Corinthians são sugadas pelas dívidas do time, que passam de R$1 bilhão de reais.
Fonte: InkDropCreative/Depositphotos
Premier League e as mudanças no Brasil
Mauro Beting e Iago Vernek citam a Premier League como uma liga mais equilibrada e que pode servir de contraponto ao Brasileirão. Na Liga Inglesa, a cota de transmissão de televisão é dividida da seguinte maneira: 50% são divididas igualitariamente, 25% são divididos de acordo com a posição das equipes e 25% divididos de acordo com o quanto de audiência que o time gera. Embora a fórmula não pareça muito diferente da brasileira, o impacto das diferenças percentuais é claro. Na temporada 2021/22, o Manchester City, campeão e clube que mais recebeu dos direitos televisivos, arrecadou 153 milhões de libras, enquanto o Norwich, lanterna e quem menos faturou, recebeu 101 milhões de libras. Ou seja, o campeão ganhou apenas 1,6 vezes a mais que o último colocado, enquanto no Brasil, como mostrado acima, a diferença chega a ser seis vezes maior.
Mas, há dois recentes fatores que podem alterar o modo como a distribuição de direitos é realizada no Brasil. Primeiro, a Lei 14.205/2021, ou “Lei do Mandante”. A partir dessa lei, o clube mandante pode negociar seus jogos sem que o visitante tenha que concordar, fator crucial para a negociação dos direitos transmissivos. Vernek explica que “até a MP do mandante em 2019, no governo Bolsonaro, a transmissora precisava comprar o direito dos dois clubes que estivessem jogando, se não ela não poderia transmitir. Isso força um pouco os clubes a fecharem parceria com uma mesma empresa justamente porque se você fecha com uma empresa diferente daquela do clube rival a partida não era transmitida por ninguém.” Para Beting, “a lei do mandante, a princípio é uma ideia interessante na qual cada um cuida do seu negócio, mas ao mesmo tempo quando cada um cuida do seu negócio deixa de cuidar dos outros, e há um sentimento básico e deplorável no futebol brasileiro desde sempre, de que o que é bom para mim não deve ser bom para o rival. O que faz os times não ganharem tudo o que devem. E muitas vezes acontecem discrepâncias como a gente teve quando foi pulverizado o Clube dos Treze em 2011.”
É com essa individualização dos clubes que começaremos o segundo fator, a criação de grupos que negociam em conjunto pelo futuro do futebol brasileiro: a Libra (Liga do Futebol Brasileiro), principal grupo, a LFF (Liga Forte Futebol do Brasil) e o Grupo União. Todos os clubes tinham o objetivo de criar uma liga única para organizar as séries A e B do Brasileirão, mas não chegaram em comum acordo. Aqui, vamos focar na Libra, pois é nela que se concentram os clubes com maior influência econômica e esportiva do Brasil.
Inspirada pela Premier League, a organização foi criada por clubes com o objetivo de administrar de forma independente a negociação e a distribuição dos direitos de transmissão do futebol, além das questões relacionadas à gestão e promoção do Campeonato Brasileiro. Hoje, a Libra é composta por nove clubes da primeira divisão, e dez da segunda, que tem a intenção de negociar coletivamente o direito de transmissão dos jogos para garantir contratos mais vantajosos e uma distribuição de receitas mais justa. O grupo, em março de 2024, fechou acordo com a Globo para a transmissão das partidas como mandante de seus clubes, com exclusividade, entre 2025 e 2029. A liga recebe R$1,3 bilhão para dividir entre seus integrantes, e aqueles que podem um dia entrar no grupo. Mas, vale lembrar que, ainda que a Libra faça parte de um movimento de reestruturação do futebol brasileiro, pelo menos nesse primeiro contrato, a organização não mudou a forma de divisão que continua no molde 40/30/30.
Os direitos de transmissão desiguais aprofundam a disparidade econômica entre os clubes, que compromete a competitividade dos campeonatos e gera um ciclo de dominação de poucos clubes na elite. Mas, entre todas as fontes de receita, o dinheiro vindo da transmissão de jogos é o que mais facilmente poderia ser distribuído de forma igualitária entre os clubes, ou, ao menos, de forma parecida. Isso porque os direitos de transmissão são pagos ao campeonato, em primeiro lugar, e não a um time específico, ao contrário da venda de ingressos e materiais, patrocínios e sócio-torcedores, os quais as receitas estão atreladas ao tamanho das torcidas dos times. Logo, é um faturamento que poderia ser usado para equilibrar a riqueza entre os clubes. Então, enquanto a formação de ligas e mudanças legislativas aparecem como uma oportunidade para reformar a distribuição dos direitos televisivos, é necessário um esforço coletivo de clubes e entidades reguladoras para criar um sistema mais equitativo que favoreça o desenvolvimento de todos.
Antônio Bandeira de Melo Carvalho Valle
Mestrando em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC (Universidade Federal do ABC), coordenador do Observatório das Transmissões de Futebóis e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação