Imagem: Reprodução Twitter NE45
Não é um sentimento restrito a mim, nordestino de Recife, ou a uma meia dúzia de colegas da região. Sempre incomodou-me (incomodou-nos, assim falo seguramente por uma maioria absoluta) o recorte daquilo que nos acostumamos a chamar de “pautas nacionais” e “pautas locais”. Por que, em geral, as notícias que vêm do Sudeste são apontadas como temas nacionais e as que são produzidas no Nordeste (o mesmo vale para Norte e Centro-oeste) são locais? Obviamente, a resposta passa por toda a construção histórica, econômica e social de desenvolvimento do Brasil como nação que tem no eixo Rio de Janeiro-São Paulo as maiores e principais empresas de comunicação do país.
Até a década de 1990, raras eram as vezes em que equipes tradicionais nordestinas apareciam na televisão. Nos acostumamos a ver os jogos do Flamengo, Corinthians e São Paulo (não em vão trago na sequência as três maiores torcidas da região Nordeste). Em Pernambuco, foi somente a partir de 1999, quando o saudoso locutor Luciano do Valle, falecido em 2014 aos 66 anos, comprou os direitos de transmissão do Estadual para exibir a competição na TV Pernambuco que essa rotina começou a mudar. Náutico, Santa Cruz e Sport passaram a figurar não apenas com maior regularidade, como também ganharam materialidade para muitos dos torcedores no interior pernambucano, onde historicamente são os clubes ao sul do país que figuram no imaginário. Aquela edição do Campeonato Pernambucano, vencida pelo Sport, fez extremo sucesso a ponto de, no ano seguinte, a Rede Globo Nordeste comprar os direitos de transmissão da competição, adquirindo o pacote completo, com as tevês aberta e por assinatura – o que se mantém até hoje.
Vejo aquele ano de 1999 como um marco, afinal era possível vender o Nordeste para o Nordeste. Se historicamente as rodas de debate sobre futebol em canais de penetração nacional optam por discutir mais a fundo o dia a dia dos maiores clubes do Brasil, um público apaixonado por futebol, e ávido por notícias e o aprofundamento do contexto de seus clubes, via-se pouco ou nada identificado com temas abordados pelos jornalistas das grandes emissoras. Nas raras aparições nacionais à época, habituamo-nos a ouvir informações desconexas, comentários genéricos e os clichês “torcida enorme”, torcida apaixonada”, “que lotam estádio” – quando, muitas vezes, os números apontavam até o contrário a depender do momento. Ou pior ainda: ouvir o grito de gol do seu time soar como um gol da Argentina no Brasil – quem não se lembra da final da Copa do Brasil, quando o Sport venceu o Corinthians, em 2008, por 2 a 0, e o narrador Cléber Machado, da TV Globo, protagonizou uma das cenas mais tristes da sua brilhante trajetória?
A imprensa esportiva alternativa
O fato é que o panorama digital, sobretudo a partir do florescimento das redes sociais, deu à audiência as ferramentas necessárias para que suas demandas fossem ouvidas. Com um mercado nordestino de mais de 50 milhões de pessoas, absolutamente plural, coube a muitos comunicadores, alheios à grande mídia, que eles próprios, de maneira independente, abrissem outras portas de possibilidades e promovessem o surgimento de novos produtos de comunicação com diferentes perfis de sustentabilidade. Apesar do esforço de alguns meios (há de se reconhecer, por exemplo, as tentativas de inserções regionalizadas do canal fechado SporTV a partir de correspondentes locais), a mídia hegemônica “nacional” jamais conseguiu dar conta de toda uma infinidade de nichos que a região Nordeste possui.
A pesquisadora Karolina Calado (2019) observa que é a partir desse panorama que surgem diversos projetos de jornalismo alternativo com a colaboração de um público ávido por um conteúdo distinto do comumente produzido pela grande mídia. “Esses projetos não apenas conseguem ser financiados pela coletividade como conseguem um peculiar engajamento. Especialmente, porque esse tipo de jornalismo se propõe a abordar pontos pertinentes caros à sociedade e as minorias” (CALADO, 2019, p. 84).
No Nordeste, fora do jornalismo esportivo, podemos apontar a Agência Tatu de Jornalismo de Dados (AL), a Marco Zero Conteúdo e a agência Retruco (PE), além da agência Saiba Mais (RN) – todos exemplos de produtos que nasceram recentemente na esteira da necessidade em se ocupar um espaço de credibilidade sobre a lacuna deixada pela mídia hegemônica e sua decadência no oferecimento de postos de trabalho. Essa explosão de novos produtos trouxe à luz a clareza do óbvio: há uma demanda reprimida na região e espaço de sobra para mais informação.
Com o surgimento dessa gama de projetos jornalísticos alheios aos tradicionais veículos de comunicação, impulsionados pela deterioração de muitos veículos tradicionais da região (a exemplo do Diário de Natal, Diário da Borborema e Diario de Pernambuco, dentre outros tantos), a mídia alternativa esportiva no Nordeste ganhou corpo nesta última década, propondo-se a discutir informação com maior profundidade e uma narrativa mais familiar aos olhos de quem é acostumado a vivenciar o futebol local.
Identificamos alguns produtos com esta linha surgidos pela região nos últimos anos, dentre os quais: o Maranhão Esportes (MA), Futzap, Caixa de Brita e Caras da Bola (PE), Voz da Torcida e Minutos Finais (PB), 45 de Acréscimo (SE), Verminosos por Futebol (CE), dentre muitos outros. Destaco aqui dois produtos que saem do Recife: o Cassiozirpoli.com.br (blog) e o Podcast 45 Minutos (2014). O primeiro, comandado pelo jornalista Cassio Zirpoli (amapaense, radicado em Pernambuco), faz uma releitura minuciosa de estatísticas nacionais trazendo sempre os números para uma visão do Nordeste. Além disso, é um dos principais responsáveis por condensar no seu blog (vinculado ao Diario de Pernambuco entre 2004 e 2018 e seguindo a partir de então de maneira independente), dados históricos relevantes a ponto de sua página ser meio de busca obrigatório, infinita fonte de pautas, e referência para qualquer jornalista esportivo da região.
O Podcast45, por sua vez, destacou-se pelas expansão do setor de cobertura além dos limites pernambucanos. Com um conglomerado de colaboradores, o produto nascido em 2014 acompanha os temas ligados aos clubes pernambucanos (carro-chefe), mas também da Bahia e do Ceará. O projeto faz a cobertura do que chama de G-7 da região, composta por Bahia, Vitória, Sport, Náutico, Santa Cruz, Fortaleza e Ceará.
Notabilizados por fazer jornalismo do “Nordeste e para o Nordeste”, aqui citando o lema do produto, o Podcast45 traz debates profundos sobre os clubes com um misto de informação e humor, pertinentes a um produto híbrido que mistura em boa dose jornalismo e entretenimento. Os jornalistas, que têm na figura do cofundador Celso Ishigami um dos líderes, gravam seus programas, em geral, de maneira remota (cada um em sua casa – situação intensificada durante a pandemia) e durante a madrugada, horário habitual de produtividade dos integrantes do produto. Além disso, o núcleo de comunicadores divide um grupo no WhatsApp com ouvintes, que participam do financiamento do projeto. Nele, jornalistas e audiência interagem, debatem os programas e discutem sugestões e colaborações enviadas por áudio ou texto.
O “time de Ceni” e o papel da mídia independente
Em expansão, o grupo pernambucano anunciou nesta semana a criação de um portal a ser lançado em 3 de novembro, o NE45Minutos – “jornalismo independente no futebol do nordeste”. Em campanha de promoção nas redes sociais e, de pronto, levantando a bandeira de defesa ao futebol da região, o perfil no Twitter do novo canal aproveitou o período de autopromoção da marca para ser porta-voz do Nordeste em uma discussão acerca de um tema que muito incomoda seus torcedores. O canal independente rebateu com veemência a notícia publicada pelo portal UOL, que tem como (mau) hábito reduzir o Fortaleza ao “time de Ceni” (SANTOS et al., 2020).
Fazendo-se uso ao chamado clickbaite, ou caça-cliques, o gigante nacional da comunicação publicou: “Luciano joga no sacrifício, desgasta e vira dúvida para decisão SPFC x Ceni”, referindo-se ao duelo entre o São Paulo e o Fortaleza, comandado pelo técnico Rogério Ceni, maior ídolo da história do tricolor paulistano. O NE45Minutos aproveitou a deixa e retrucou: “Não foi um lapso, ou uma desatenção. Foi, mais uma vez, uma escolha. A antiga e repetida escolha de falar com apenas uma parte do país. De transformar o outro lado em coadjuvante. Sem nome. Sem identidade. … Mas nós também podemos fazer nossas escolhas. E faremos.”
O papel da mídia independente é exatamente este: rebater o hegemônico, questionar, constranger e tentar atrair o interesse do seu público; sem pudor, sem amarras, mas com absoluto profissionalismo. O Grupo 45 Minutos abraça, como representante regional, o protagonismo no ato de quebrar um silenciamento histórico, refutar preconceitos velados e fornecer um modelo de contrainformação, provocando, assim, um choque necessário ao discurso propiciado pelo modelo hegemônico de comunicação. Não em vão, após a polêmica e uma avalanche de críticas que vieram à reboque da observação do grupo nordestino, o UOL “silenciosamente” (sem posicionamento ou pedido de desculpas) optou por apagar a postagem nas redes sociais.
Em recente artigo publicado sobre a lógica do clickbait na cobertura esportiva do Brasil, Santos, Borges e Sobrinho (2020) trazem como estudo de caso justamente essa “metonimização” do Fortaleza ao “time de Ceni”. Trazendo exemplos de casos protagonizados pelo portal UOL e outros grandes da mídia nacional, os autores nordestinos observam que:
“o clickbait adotado pelo noticiário esportivo não segue apenas uma lógica de audiência, mas de apagamento de identidade – do clube Fortaleza – e ainda reproduz uma prática recorrente da imprensa do Sul e Sudeste de inferiorização de identidades nordestinas” (SANTOS et al., 2019, p.135).”
Embora objeto de uma pesquisa que ainda está nascendo, parto da hipótese que essa mídia alternativa esportiva nordestina, então, está inserida naquele fenômeno nascido em 1999, com Luciano do Valle. O visionário locutor foi capaz de enxergar na região um promissor polo consumidor de comunicação, sendo desde então uma espécie de bússola capaz de apontar um caminho que, enfim, parece estar sendo trilhado com maior perspicácia – e ressalto que aqui optei por não adentrar no sucesso recente de audiência da Copa do Nordeste e a guerra que se tornou para transmiti-la (assunto este para outro debate).
O fato é que, não à toa, escolhi como tema essa expansão das discussões que tangem o esporte nordestino a partir do ganho de vozes da região em canais com alcance nacional. Afinal, estreio aqui minha primeira coluna no Ludopédio, fruto da parceria do portal com o ReNeme, que nasce no anseio de trilhar caminho semelhante ao da mídia alternativa esportiva nordestina, discutindo pesquisas e temas que surgem da e sobre a região, mas que são relevantes para todos os estudiosos do país. Vida longa à nossa parceria e às pesquisas em comunicação e esporte no Nordeste e em todo o Brasil!
Referências
CALADO, Karolina Almeida. Narrativas Jornalísticas na Mídia Independente: vozes, temáticas e estratégias argumentativas. (Tese de Doutorado). PPGCOM-UFPE, Recife, PE, Brasil, 2019.
SANTOS, A. D. G.; BORGES, M. A. R. S.; SOBRINHO, C. P. F. “Quando um treinador substitui o nome do clube: uma análise do “Time de Ceni” como exemplo da lógica do clickbait na cobertura esportiva do Brasil“. FuLiA / UFMG, v. 5, n. 1, jan.-abr., 2020.
LEAL, Daniel. De Luciano do Valle ao Podcast 45 Minutos: o papel do jornalismo esportivo independente no Nordeste. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 60, 2020. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/de-luciano-do-valle-ao-podcast-45-minutos-o-papel-do-jornalismo-esportivo-independente-no-nordeste/