Foto: A origem do Clube dos 13
No texto anterior da coluna do Na Bancada na Trivela, tratei das questões legais para constituir uma liga de clubes no Brasil, considerando a carta entregue por 19 dos 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro em 15 de junho. Posso dividir os comentários feitos no texto em: (poucas) pessoas realmente otimistas que “agora vai!”, inclusive por conta da geração atual de dirigentes; e muita gente pessimista por causa de situações anteriores e, especialmente, pensando na negociação dos direitos de transmissão do torneio.
Aqui, tentarei elencar os problemas de tentativas anteriores de associação de clubes, mas também soluções existentes no futebol brasileiro. Começamos com a apresentação de dois casos: Clube dos 13 e Liga do Nordeste. Em seguida, seguiremos para elementos gerais de organização e discussão coletiva entre os clubes.
As desigualdades geradas pelos “grandes clubes do futebol brasileiro”
A “União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro”, o Clube dos 13, foi criada em meados de 1987 após a CBF apresentar dificuldades para realizar o Campeonato Brasileiro. A edição anterior, que deveria começar a regularizar o torneio nacional em menos clubes, foi marcada por quiproquós jurídicos. Além disso, a entidade tinha dívida “da ordem de 22 milhões de cruzados (cerca de R$ 800 mil)” (SANTOS, 2019, p. 134).
“Em julho de 1987, os presidentes de Flamengo e São Paulo, Márcio Braga e Carlos Miguel Aidar, respectivamente, e outros onze presidentes de clubes resolveram exigir da CBF mais qualidade no campeonato nacional de futebol, donde surgiu a União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro, o Clube dos 13. Os clubes resolveram, posteriormente, organizar o torneio. A Copa União contaria com 16 times, os 13 de maior torcida do país (Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Vasco, Santos, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético-MG, Botafogo, Fluminense e Bahia), mais três convidados (Santa Cruz, Coritiba e Goiás) (SANTOS, 2019).”
A Copa União já pecava pela formação dos clubes que disputariam o torneio, desconsiderando a campanha do ano anterior, sem a participação, por exemplo, do segundo colocado Guarani e do terceiro America-RJ. A ideia hoje vigente de um “G12” começava ali, considerados os 12 “grandes clubes do futebol brasileiro” mais o Bahia, representando Norte e Nordeste.
Ainda que às pressas, conseguiu-se fechar a venda dos direitos de transmissão exclusivos para a Rede Globo de Televisão, em contrato de cinco anos, com o pagamento de US$ 3,4 milhões por temporada. Após isso, outros contratos de patrocínio foram assinados. Porém, ao verificar relatos da revista Placar da época, uma grande defensora da liga de clubes, o Clube dos 13 já começou com “os 13 clubes da entidade recebendo a mesma cota e os três demais com a metade do valor” (SANTOS, 2019).
Mesmo que a CBF tenha retomado a organização do torneio, o Clube dos 13 seguiu sendo o responsável pela negociação dos direitos de transmissão dos times sob a sua alçada.
Adiantando na história, ao menos até 1996 o Clube dos 13 dividia as cotas conforme a classificação, mas depois criou os grupos de cotas a partir da quantidade de torcida. Agregou mais sete clubes posteriormente, mas sempre aparecia algum na Série A que não era associado. Nesses casos, negociava também por eles, só que num modelo diferente, com contrato por uma temporada e num valor que no último triênio (2009-2011) foi de menos da metade em relação ao último grupo de cotistas (R$ 5,5 milhões a R$ 13 milhões) e mais de 6x em relação ao primeiro.
O desnível também estava presente na Série B, porque o cotista do Clube dos 13, quando caía, mantinha no primeiro ano a cota da Série A. A título de exemplo, quando o Corinthians jogou a Série B de 2008 ganhou de cotas de transmissão quase 17 vezes mais que os demais (R$ 22 milhões X 1,25 milhão).
Como afirma Emanuel Leite Júnior, em livro sobre o problema da distribuição de cotas no Brasil, já com o Clube dos 13:
“Gerava-se uma segregação, criando um seleto e pequeno grupo de clubes privilegiados, os quais se separavam e se distanciavam de todos os outros clubes brasileiros. Uma apartação que dividia clubes “grandes” dos “pequenos”, contribuindo para o engessamento da mobilidade entre as agremiações, uma vez que a tendência era de os “grandes” se tornarem, a cada dia, sempre maiores e os “pequenos” se tornarem, gradativamente, “menores”, condenados à marginalidade do futebol nacional (no que tange às condições de disputar títulos e de relevância nas competições em que participem) (LEITE JÚNIOR, 2015, p. 64).”
A implosão da associação, em 2011, após Termo de Cessação de Conduta Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) que exigia processos mais transparentes de negociação de direitos de transmissão, levou à piora das desigualdades. As negociações passaram a ser individualizadas por clube e novos subgrupos entre os cotistas foram criados, com Guarani e Portuguesa saindo da lista.
Os ciclos de negociação para 2012-2015 e 2016-2018 representaram o surgimento da diferença de Flamengo e Corinthians para São Paulo, Vasco e Palmeiras e de maior distância entre os subgrupos. A diferença dos dois que mais receberam para os não cotistas saiu de 6,5x para 7,3x (R$ 170 milhões a R$ 23 milhões). Além da continuidade do privilégio para o cotista que caía para a Série B.
Mesmo com a imposição por disputa no mercado de proporcionalidade de pagamento para TV aberta e TV fechada – igual (40% ou 50%), por aparição (30% ou 25%) e por classificação (30% ou 25%) –, a diferença do que mais recebeu para o que menos, em 2019, ficou em 6,1x, segundo dados de Rodrigo Capelo. Os acordos de pay-per-view mantiveram as grandes diferenças, com poucos com valor mínimo garantido.
Hoje, a distribuição de cotas está dividida em clubes com: todas as plataformas com o Grupo Globo; Turner na TV fechada e outras duas na Globo; e Globo na aberta, Turner na fechada e PPV próprio (Athletico).
Outras receitas estão divididas de formas diferentes: alguns com placas do campo mediados pela Sportpromotion e outros por conta própria; naming rights e patrocínios do torneio com a CBF; propriedades digitais com a Feng/Golden Goal; e os direitos individuais e de beting negociados de forma coletiva para duas agências (GSRM e Zeus Sports Marketing, respectivamente).
O exemplo da Liga do Nordeste
Após torneios regionalizados para gerar vaga em campeonatos nacionais nas décadas de 1960 e 1970, em 1997 a CBF retoma a organização dos regionais e cria a Copa do Nordeste, disputada por convidados por ela a partir dos estaduais, modelo que vai até 2000 – na geografia da entidade, Maranhão e Piauí não faziam parte.
Em 2001, 16 times criam a Associação de Clubes de Futebol do Nordeste, que transforma a Copa em Campeonato do Nordeste e fixa em seus associados a participação: Bahia, Fluminense, Vitória, Confiança, Sergipe, CSA, CRB, Náutico, Santa Cruz, Sport, Botafogo, Treze, ABC, América, Ceará e Fortaleza.
Segundo edição da Placar de fevereiro de 2001, o ASA, campeão alagoano, e Juazeiro, terceiro no Baiano, entraram na justiça exigindo as vagas no torneio, que teriam direito no modelo anterior da Copa. Amparada pela Lei Pelé, que permitia a formação de ligas, a ACFN conseguiu liminar permitindo o torneio.
Ainda de acordo com o repórter Eduardo Cordeiro, isso se justificaria especialmente porque aquela edição gerava receitas de R$ 10 milhões, cinco vezes mais que a edição anterior, cada clube dividindo R$ 300 mil. Já se desenhava uma segunda divisão em 2002, considerando que os contratos de transmissão (Globo) e publicidade estavam garantidos até 2004.
Em 2002, a CBF amplia o formato de todos os regionais (Nordeste, Sul-Minas, Rio-São Paulo e Norte), reconhecendo o sucesso nordestino, esvaziando os campeonatos estaduais.
Com crescimento de 50% nas receitas, O Campeonato do Nordeste de 2002 foi o primeiro com divisão de cotas, o que gerou controvérsias. Em nova matéria da Placar, em 18 de janeiro, há a informação que os idealizadores do torneio, Bahia, Vitória e Sport, ganhariam R$ 670 mil, contra R$ 560 mil de um segundo grupo, com Náutico, Santa Cruz, Fortaleza e Ceará, e R$ 500 mil para os demais. O Santa Cruz reclamou e foi ameaçado de ser desfiliado da liga.
Mas o sucesso nordestino, que teve a primeira edição com rebaixamento e teria acesso de dois clubes, não se repetiu nos demais casos e, com concordância da Globo, 2003 marca o fim do apoio da CBF aos regionais e a chegada da Série A em pontos corridos para preencher a maior parte do calendário nacional de futebol.
A edição da Copa do Nordeste de 2003 foi sem apoio e esvaziada e, no ano seguinte, já não teve condições financeiras de ser repetida. Com contratos vigentes para anos seguintes, a Liga do Nordeste entrou numa disputa judicial contra a CBF para retomar o torneio ou para que os clubes recebessem os valores contratualizados se o calendário não tivesse mudado (R$ 20 milhões).
O torneio voltou em 2010, num acordo entre liga e CBF, como uma versão teste ainda esvaziada, mas com transmissão do Esporte Interativo e de algumas afiliadas da Globo. Só em 2013, seguindo acordo que obriga a existência do torneio por 10 anos, a CBF recolocou a Copa do Nordeste no calendário. O torneio conseguiu um contrato neste período com o Esporte Interativo, que garante valor mínimo – mesmo após a extinção dos canais.
A Copa do Nordeste decide tudo em formato de assembleia com as equipes participantes do torneio, que, de início, eram definidas pelos estaduais. Times de Maranhão e Piauí entraram apenas em 2015, mas recebendo cota menor que os representantes de outros Estados nos primeiros anos.
A partir de 2018, após pressão de clubes com maior torcida – um deles saiu por dois anos, o Sport –, o torneio passou a considerar para participação e cotas de transmissão o ranking de clubes da CBF, que não pontua o torneio regional. Criou-se quatro grupos de cotas para a fase de grupos, cuja diferença chegou a 2,8x do maior ao menor valor em 2020 (R$ 2,2 mil a R$ 775 mil). Isso de vez em quando gera discordâncias públicas de presidentes de clubes de grupos de cotas inferiores.
Elementos de organização e discussão
Creio que, a partir desses dois casos, podemos tratar de algumas dúvidas e de como evitar certos problemas.
A experiência coletiva mais recente e mais bem sucedida para as Séries do Brasileiro foi a negociação dos direitos internacionais. Porém, isso só ocorreu após o Grupo Globo desistir de negociar as placas e os direitos internacionais. Ainda assim, a negociação dos direitos internacionais se definiu apenas na terceira tentativa de negociação, coordenada pelo Comitê Nacional de Clubes. Antes, passaram o direito de negociar para a CBF.
Outra preocupação é até que ponto pode ir a união de clubes, pelos exemplos que demos, sem ameaça de saída do torneio. Como apontei no texto da semana passada, segundo a Constituição Federal de 1998, “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.
Esse argumento constitucional, por sinal, foi utilizado em diferentes momentos para justificar as negociações individuais. Esse argumento foi usado até mesmo por representantes do CADE, lembrando que o direito de imagem é uma propriedade que deve ser respeitada segundo a Constituição – ainda que o CADE tenha aberto outra investigação sobre este mercado em 2020.
No ano passado, na discussão da MP do Mandante, isso também apareceu. Alguns clubes, caso do Palmeiras, se posicionaram a favor de uma lei que repasse o direito ao mandante e pela negociação coletiva de direitos de transmissão, mas que isso não fosse por vias legais. Na época, havia sido proposta uma emenda à MP pelo deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ) que propunha a formação obrigatória de liga e a divisão de cotas de TV – que virou o projeto de lei 4889/2020 (DEM-RJ).
Há projetos de lei sobre distribuição mais justa da divisão de cotas no Congresso desde 2011, como apresento num levantamento publicado na Trivela publicou ainda em 2014 uma entrevista com o deputado federal Pedro Henry (PSB-PE), autor de um deles. A base desse projeto segue na Câmara de Deputados, representado pelo PL 755/2015 – lembro que La Liga mudou a distribuição de cotas a partir de decreto-lei em 2015.
A possibilidade de formação de liga tem, dentre outras vantagens, que os agentes econômicos, dos direitos de transmissão à autorização para games de futebol – que vai cada um por si no Brasil, com certa mediação da CBF para a Konami no caso da Série A –, sabem com quem podem entrar em contato para adquirir determinada propriedade.
A negociação coletiva em formato de liga pode determinar parâmetros justos para a distribuição das receitas, caso da de transmissão. Lembrando que ser justo não necessariamente é todo mundo receber igual. O modelo 50-25-25 ou 40-30-30, desde que considere todo o valor de transmissão, me parece ser o mais adequado.
Como afirma Emanuel Leite Júnior e outros especialistas em direito econômico e esporte, qualquer prática esportiva exige o mínimo de acordo (regras e pontuação precisam ser iguais, por exemplo). Além disso, o mecanismo de “solidariedade” precisa ocorrer para manter o interesse em todo o torneio e por mais tempo, de maneira a não ampliar discrepâncias.
Quando se fala em solidariedade, penso também que o futebol profissional do topo da pirâmide, com acesso a mais receitas, poderia auxiliar os demais. Creio que seja um bom sinal a Série B entrar com uma porcentagem menor na negociação dos direitos internacionais. Mas seria interessante que uma porcentagem das receitas, ainda que bem menor, pudesse ser distribuída para a base (Séries C e D e Séries A1, A2 e B do Brasileirão de mulheres).
É necessário ainda que o modelo de sistema aberto, com acesso e descenso, permaneça, independentemente de quem disputará a Série A, evitando campeonatos exclusivistas – como seria a Superliga europeia. Lembrando que o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671/2003), parágrafo 5º do Art. 9º, define que o regulamento de um torneio esportivo precisa durar pelo menos por dois anos.
Questões burocráticas como arbitragem e indicação para Conmebol é algo tranquilo. A própria Copa do Nordeste nunca teve problema com indicação de arbitragem, por existir uma tabela de valores definida por CBF e federações a serem pagos pelo organizador do jogo – normalmente o clube mandante.
Por fim, já de um texto longo, reafirmo o que defendo há alguns anos: os clubes precisam entender que são protagonistas do futebol profissional, assumir as responsabilidades pelas escolhas políticas e econômicas que tomam e entender que o jogo é uma mercadoria coletiva, mas sem se esquecer que se trata de algo com interesse social relevante. Culpar CBF, emissora de televisão, lei ou qualquer outro agente não basta. Ainda que pessimista sobre alguns pontos, espero que a liga siga adiante, mas sem repetir certos erros que acentuam as desigualdades.
SANTOS, Anderson David Gomes dos. Como evitar problemas anteriores? Ou como ter a liga que queremos. Trivela, São Paulo, 28 jun. 2021. Disponível em: https://trivela.com.br/na-bancada/como-evitar-problemas-anteriores-ou-como-ter-a-liga-que-queremos/. Acesso em: 18 ago. 2023.