Relação entre grupos de mídia, plataformas digitais e instituições do futebol é caracterizada pela concentração de lado a lado
Iago Vernek Fernandes
“Eu costumo acompanhar os jogos do Palmeiras com o meu pai, pelo rádio ou pela TV. Em jogos decisivos, eu ligo a TV e a cada lance é uma emoção diferente. Minha experiência no estádio é muito recente. Dia 4 de fevereiro deste ano, no Morumbi. No terminal João Dias, peguei o 5119 [uma das linhas de ônibus que circulam na capital paulista] com um tantão de palmeirense até uma altura da [avenida] Giovanni Gronchi e desci o resto a pé até o portão 5B. Entrei no estádio no mesmo instante em que os jogadores estavam entrando no campo. A Mancha [uma das torcidas organizadas do Palmeiras] fazia a festa. O estádio inteiro cantava. Era nítido que todos os extratos sociais estavam representados ali, muito pelos ingressos a preços populares. Ganhamos de 3 a 1. A volta foi algazarra, os torcedores cantando no ônibus até o terminal”.
O relato acima foi escrito por André Alcântara, em entrevista concedida para esta reportagem. Publicitário e palmeirense, André é uma pessoa com deficiência (PCD). A sua emoção de comparecer ao estádio em uma partida do time de coração nos motiva a escrever sobre o futebol, nos múltiplos aspectos que envolvem esse esporte, sobretudo em sua relação com a mídia.
Diante dos dilemas relacionados à democratização das comunicações, reivindicação que está na origem do Intervozes, buscamos ampliar os debates sobre os direitos de transmissão do futebol no Brasil. Em 2018, abordamos os escândalos de propina na FIFA (caso conhecido como Fifagate) e o monopólio da Globo. No ano seguinte, tratamos dos grupos de comunicação internacionais que avançavam sobre o território nacional. Em 2020, a comunicação pública e os negócios da mídia na radiodifusão, bem como as disputas políticas envolvendo cartolas, governo e meios de comunicação, foram objetos de nossas inquietações. Por fim, em 2021, trouxemos um panorama sobre os monopólios digitais e os conglomerados de mídia no futebol.
Nesse percurso de análises e escritas, percebemos uma série de percalços que se desdobram em questões estruturais da sociedade brasileira. Nosso desafio neste texto será, para além dos direitos de imagem, enunciar problemáticas igualmente relevantes, como o sexismo, o machismo e os desafios das mulheres atletas de futebol, racismo, capacitismo e acessibilidade nos jogos, e desigualdade socioeconômica e regional nos campeonatos.
Há muitos anos, conglomerados nacionais e internacionais de mídia alternam forças na transmissão do futebol no Brasil. A fim de entender essa situação, considerando o período entre 2012 e 2022, fizemos um levantamento sobre a exibição dos principais torneios europeus (Champions League e Europa League), sul-americanos (Copa Libertadores da América e Copa Sul-Americana), nacionais (Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil), regionais (Copa do Nordeste e Copa Verde), estaduais e de seleções (Copa do Mundo, Copa América e Eurocopa), exibidos em território nacional, via TV aberta, fechada e streaming.
Em geral, é possível perceber que alguns agentes globais vêm aumentando sua atuação no mercado interno, que parece se diversificar, impulsionado pelo avanço das plataformas digitais. Em contrapartida, destaca-se a relevância do grupo Globo, que mantém há décadas o monopólio da transmissão do futebol nacional. A empresa, que costuma ter seus interesses comerciais favorecidos pelas instituições reguladoras do esporte, chegou a controlar quase metade das exibições entre 2016 e 2017. Apesar de romper alguns contratos recentes, a Globo assegurou, com exclusividade, o televisionamento da Copa do Mundo de 2022, além de voltar a exibir a Copa Libertadores em 2023.
Entre estratégias de cooperação e competição, a Globo se mantém acima de seus concorrentes nacionais. O modelo oferecido pela emissora à Rede Bandeirantes até 2015, ao repassar a licença de transmissão de alguns campeonatos nacionais e sul-americanos, visando diluir custos de produção, é reformulado neste momento de avanço dos grupos estrangeiros. Por outro lado, em 2018, após um recuo da Band, o SBT retornou aos gramados para transmitir a Copa do Nordeste, acirrando a disputa nos anos seguintes pela exibição dos principais campeonatos.
Se os grupos nacionais dominam a audiência em TV aberta, na rede por assinatura alguns conglomerados globais marcaram presença constante. No ano de 2012, o Esporte Interativo (EI), canal brasileiro que surgiu em 2004, passou ao controle da Turner, empresa estadunidense dona dos canais TNT e Space. Após transações polêmicas, o grupo foi vendido para a gigante americana AT&T, detentora da Sky, Time Warner e Discovery. Devido a questões comerciais, o EI Plus, plataforma de streaming pioneira no Brasil, foi substituído pelo Estádio TNT Sports e pela HBO Max. Para completar a história, no ano de 2019, a Disney, detentora dos canais ESPN, concluiu a compra da 21st Century Fox, adquirindo todo conteúdo de esporte do grupo, reunido na plataforma Star +.
Em um contexto de convergência e hibridização entre diferentes plataformas, o Facebook anunciou, na primeira metade de 2018, os direitos de transmissão da Copa Libertadores da América, UEFA Champions League e World Surf League. No mesmo período, a Amazon anunciou a exibição dos jogos da Premier League, a liga inglesa de futebol, e, em 2022, da Copa do Brasil. No mesmo ano, o Tik Tok passou a transmitir a Copa do Nordeste. Na Copa do Mundo do Catar, o Youtube, em parceria com a produtora Live Mode, fechou o primeiro contrato de transmissão de um mundial de seleções na internet. Atraindo diversas marcas patrocinadoras, o influenciador Casimiro Miguel atingiu a marca de 5,5 milhões de espectadores conectados durante a partida entre Brasil e Croácia, derradeira para a seleção canarinha, que viria a ser desclassificada nos pênaltis.
Como alternativa aos monopólios digitais, em 2019, chegou ao Brasil a DAZN, adquirindo os direitos de exibição da Copa Sul-Americana, Série A (campeonato italiano) e Ligue 1 (campeonato francês). Por causa dos prejuízos financeiros relacionados à pandemia, a empresa inglesa renunciou, no ano seguinte, de boa parte do seu catálogo. Por fim, outro movimento interessante nesse setor tem sido a transmissão das próprias confederações, a exemplo da Conmebol TV, que vem exibindo os jogos da Copa Sul-Americana e Libertadores da América, desde 2019 e 2020, respectivamente.
Em meio às infindáveis discussões a respeito dos Campeonatos Estaduais, o monopólio da mídia segue ditando as regras do jogo. Isso quando há retorno financeiro e viabilidade política para a exibição dos jogos. Caso contrário, os torneios são esquecidos pela mídia comercial e relegados aos esforços de governos locais. De acordo com Anderson Santos, professor da Universidade Federal de Alagoas, “a concentração dos meios de comunicação, especialmente no formato de rede de afiliadas, é uma marca importante para que os campeonatos do Norte e Nordeste demorem até três décadas para começar a ter jogos transmitidos em audiovisual quando comparados a Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente. Além disso, há o formato da programação, que limita a possibilidade de horários para transmissão de jogos, dada a prioridade de audiência a partir da cabeça de rede”.
Autor do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol”, publicado em 2019 pela Editora Appris, Anderson relembra alguns casos que exemplificam essa desigualdade regional nas transmissões. Enquanto sozinha a Globo domina a exibição em sete estados, Record (3), Band (2) e SBT (2) controlam, juntas, a transmissão de outros sete torneios locais. Nos estados onde há pouca concorrência, “a mídia público-estatal se destaca como pioneira – TVE na Bahia e TV Cultura no Pará; em Pernambuco, a TV Universitária transmite algumas partidas, algo semelhante ao Campeonato Sergipano com a TV Aperipê”, conta o pesquisador. Em Roraima, Tocantins e Paraná as partidas são exibidas pela TV Assembleia, já no Mato Grosso do Sul e Espírito Santo a transmissão é da TV Educativa, afiliada da TV Cultura.
Abocanhados pelos meios de comunicação privados ou relegados à comunicação público-estatal, que é pouco valorizada por diferentes governos, os territórios da mídia no Brasil estão associados à formação de centralidades econômicas e demográficas, que se dispõem como nós da rede de produção e circulação de notícias. Se, por um lado, a FIFA, a nível global, arbitra e conduz os rumos do esporte, há uma dependência dos pequenos e médios veículos de comunicação em relação aos grandes conglomerados midiáticos. Nesse sentido, a diversidade cultural que fundamenta a capilarização do futebol, quando transformada em mercadoria pela mídia, acaba por enterrar o potencial esportivo dos lugares.
Ampliando o escopo da análise, Mariane Pisani, professora doutora na Universidade Federal do Piauí, diz que “para além da mídia e dos problemas da televisão e rádio, a gente tem um investimento ainda muito precário no futebol de mulheres nas regiões Norte e Nordeste. O que não é visto, não é lembrado. O que não é transmitido, não pode ser consumido. Então, precisamos de políticas públicas para transmissão dessa modalidade de uma forma mais espraiada”.
No início de 2023, o Atlhético deu um bom exemplo no sentido de valorizar a cultura do futebol. Após punições relacionadas a conflitos entre torcedores, o clube do Paraná reverteu uma decisão judicial de jogar com portões fechados e colocou cerca de 32 mil mulheres e crianças nas arquibancadas da Arena da Baixada, em partida contra o Foz do Iguaçu.
Na Argentina, a Ley de Medios, legislação nacional para o setor das comunicações, promulgada no governo Kirchner, no âmbito do programa Fútbol para Todos, estatizou as transmissões do futebol, reconhecendo-o como patrimônio cultural e ampliando a exibição das partidas na TV, rádio e internet. Como detalha Eduardo Covalesky Dias, doutor em Ciências da Comunicação, a medida “fortaleceu os meios públicos de comunicação da Argentina, além de ter encontrado grande popularidade entre os torcedores. A agenda de jogos da Primera Nacional, a Série A argentina, foi remanejada e todos os jogos eram transmitidos em horários alternados em TV aberta, uma revolução para aquele momento, já que a TV fechada controlava os jogos transmitidos”. Apesar de revogada no governo Macri, justamente por afrontar os interesses comerciais do principal grupo de comunicação do país, os argentinos demonstraram que é possível enfrentar esse debate.
Longe de alterar por completo a estrutura desigual que caracteriza o futebol e a comunicação no Brasil, a mídia alternativa tem realizado um trabalho de resistência. É o caso do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, criado com o intuito de discutir o racismo no esporte. De acordo com Marcelo Carvalho, diretor e cofundador do projeto, “não se trata da possibilidade de acabar com o racismo no futebol, mas sim utilizar essa plataforma de grande alcance para falar sobre racismo com a sociedade”. Anualmente, o Observatório publica relatórios com os casos de racismo e seus desdobramentos. “Esse documento hoje é a principal referência sobre racismo no futebol brasileiro para clubes, CBF e jornalistas”, conta.
Ainda sobre o papel da mídia alternativa, Anderson Santos destaca a importância dos canais Ludopédio e Trivela. O primeiro, diz ele, “é o principal portal sobre pesquisa em futebol da América Latina, coadunando diversas ciências, fotografias, crônicas e ensaios, uma boa fonte de investigação de artigos científicos, monografias, dissertações e teses”. Já o segundo, conforme o pesquisador, “trata-se de um jornalismo esportivo de qualidade e com um fôlego impressionante, produção de podcasts/videocasts e espaço para diferentes pautas e colaborações a partir de determinadas colunas”.
Ressaltando o futebol praticado por mulheres, Mariane Pisani, em entrevista concedida ao podcast O jogo é hoje, diz que o “trabalho dessa mídia não hegemônica é importante para sustentar e bancar que esse esporte continue na visibilidade”. A professora lembra ainda o preconceito e estigma que as mulheres futebolistas sofreram e ainda sofrem na mídia comercial, como ilustra uma matéria de teor racista publicada em 1983 pela antiga Revista Placar e resgatada pelo canal Dibradoras: a jogadora branca chamada de “A Bela” e as negras representadas como “feras”. No texto, há referências a atletas “selvagens”, “perigosas”, que têm que “voltar para a jaula” (sic).
Para além do racismo e do machismo no futebol, há problemas relacionados ao capacitismo e à acessibilidade, tanto na transmissão das partidas quanto nos estádios. Como resume André Alcântara, com quem iniciamos esta reportagem, “a sociedade de uma maneira geral negligencia muito esse aspecto. O futebol, por estar inserido nesse contexto, reflete o mesmo cenário. As novas arenas são bastante acessíveis, foram construídas com esse intuito. Mas o caminho até os estádios não apresenta a mesma acessibilidade, muito pela omissão do poder público. São calçadas esburacadas, desniveladas, sem caminho tátil para cegos”.
André enfatiza ainda que “outra questão da acessibilidade é o valor do ingresso, que faz com que o futebol seja inviável para as camadas mais pobres da população. Isso afasta ainda mais as pessoas com deficiência dos estádios, que mesmo com o benefício da meia-entrada, não conseguem pagar, visto que o mercado de trabalho reserva cargos mais operacionais e com salários menores. Por ora, os espaços não são para todos, é um privilégio o que é direito, garantido pela constituição”.
Na mesma linha, “mas do outro lado do campo”, Mariana Lima, corintiana e mãe de um garoto com paralisia cerebral, comenta a experiência do filho: “diante da deficiência do Pedro, ele tem baixa visão. Geralmente durante os jogos na televisão, ele acaba sendo mais ouvinte. Ele ouve a narração do jogo, a torcida e o pai torcendo. Na hora do gol, ele fica feliz e empolgado”.
Mariana lembra ainda a emoção da família ao comparecer à Neoquimica Arena, estádio de propriedade do Sport Club Corinthians Paulista, com Pedrinho e outras crianças com deficiência. Além de incentivar a presença de pessoas com deficiência no estádio, o Corinthians ostenta a primeira torcida formada por pessoas com autismo no Brasil, os Autistas Alvinegros.
Segundo Cristiana Mello Cerchiari, pesquisadora sobre formação de professores para alunos com deficiência visual, “o futebol mundial está dando passos importantes rumo ao acesso a conteúdos com acessibilidade. Prova disso é a transmissão dos jogos da Copa do Qatar e do Campeonato Paulista (2023) pelo Youtube com audiodescrição”.
Entretanto, apesar da intenção de ampliar a acessibilidade no mundial de seleções, a FIFA ofereceu uma “inclusão maquiada”. É o que conclui Iraildon Mota, fundador da Comradio, escola de comunicação que abriga o projeto Mulheres de Visão, o qual, desde 2019, tem o objetivo de empoderar e ampliar a renda de mulheres cegas e com baixa visão. “Imagina uma pessoa com deficiência visual que assiste à abertura da copa com alguns elementos de audiodescrição, mas sem o contexto sobre o país onde a copa foi realizada. Ou seja, é como passar tinta d’água na parede cheia de fissuras profundas”.
De acordo com Iraildon, que também é membro do Conselho Diretor do Intervozes, “do ponto de vista da acessibilidade, foi relatado [por pessoas com deficiência que compõem o projeto Mulheres de Visão] que diversas imagens importantes deveriam ser audiodescritas e não foram. Isso prejudica o entendimento completo do conteúdo”. Conforme adverte Cristiana, para além das ferramentas de acessibilidade, “precisamos garantir que essas iniciativas sejam rotineiras e se realizem em todos os jogos e programas esportivos, não só de futebol, mas também de esportes olímpicos e paralímpicos. É um trabalho gigantesco, mas há muitos profissionais – com e sem deficiência – capacitados para isso”.
A fim de alcançar a democratização do futebol e da mídia, seria importante efetivarmos mecanismos que estimulem a diversidade e a pluralidade. E isso não ocorre sem a redução do poder da FIFA e demais confederações, bem como dos conglomerados de mídia e das plataformas digitais. Nesse sentido, a ampliação do acesso às tecnologias da informação e a multiplicação de veículos de comunicação, com posições políticas diversificadas e representatividade social (de classe, gênero, raça, sexualidade, pessoas com deficiência etc.), fortaleceria a democracia e a cidadania. A sua ausência, no entanto, tende a rebaixá-las.
FERNANDES, Iago Vernek. Futebol, direito de transmissão e diversidade: da TV ao streaming. Le monde diplomatique, São Paulo, 25 abr. 2023. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/futebol-direito-de-transmissao-e-diversidade-da-tv-ao-streaming/>.
Observatório das Transmissões de Futebol © 2024 Todos os direitos reservados