Por Alex Pegna Hercog
Eu estava em Feira de Santana, segunda maior cidade da Bahia, a 90 km de Salvador, para debater a democratização dos meios de comunicação. Diante de uma plateia de estudantes, precisava atraí-los, por isso tive a ideia de começar por um tema popular e, lancei a pergunta: quem aqui torce para o Flamengo? E para o Corinthians? Vasco? E para o Vitória? Bahia? E Bahia de Feira? Como eu previa, a grande maioria dos jovens presentes torciam para times do Rio de Janeiro e São Paulo, em detrimento das equipes baianas. Era o mote ideal para falar sobre formação cultural a partir do acesso à transmissão de jogos de futebol masculino e, enfim, chegar na discussão sobre direito à comunicação.
Mas a esperteza da pergunta deu lugar a um breve constrangimento. Ao meu lado, na mesa de debate, estava o presidente do Fluminense de Feira, o primeiro time do interior a conquistar um campeonato baiano. Com seus dois troféus, o clube é um dos maiores vencedores do estadual, ao lado de Atlético de Alagoinhas e atrás de Vitória e Bahia. Ele educadamente me repreendeu e me fez perguntar ao público: e quem torce pro Fluminense de Feira? Sem surpresa, foram poucas as mãos levantadas.
Fonte: Wikipedia
Depois da bola fora, lancei a questão: por que vocês torcem pra esses times? Não é coincidência, o apreço de nordestinos a times do Sudeste tem relação direta com o histórico modelo de transmissão. Com um sistema de radiodifusão marcado pelo oligopólio midiático, o Brasil sempre possuiu “meia dúzia” de empresas controlando as informações produzidas e distribuídas pelo país. Sediadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, os principais veículos impuseram uma cultura sudestina – seja na ridicularização ou invisibilização dos corpos e sotaques originários de outras partes do país, seja na promoção cultural a partir do que interessava à população carioca e paulista.
Por muito tempo os nordestinos e nordestinas só acessavam a exibição de jogos pela TV aberta e lá havia um monopólio na transmissão que privilegiava partidas do Vasco, Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras. Antes disso, as rádios também tiveram um importante papel na transmissão de jogos que, mais uma vez, ignorava os clubes locais e retransmitiam as partidas dos times do Sudeste. Como resultado, atualmente apenas 17% das pessoas do Nordeste escolheram, como primeira opção de torcida, times da região. A pesquisa, divulgada pela Ipec/O Globo em 2022, aponta que dos seis clubes mais citados pelos nordestinos, cinco são do Sudeste e cerca de 25% dos torcedores são flamenguistas.
O futebol é um grande exemplo para compreender a força que a rádio e a televisão tiveram na construção da identidade e formação cultural do povo brasileiro. As distorções que a concentração midiática causaram ao longo de décadas justificam a demanda por uma regulamentação dos meios de comunicação, há muito tempo defendida pelos movimentos sociais. Dentre os artigos constitucionais que são apontados como essenciais para serem regulamentados estão o artigo 220 que proíbe monopólios e oligopólios de mídia, e o artigo 221 que define, como princípio para as programações, “a promoção da cultura nacional e regional” e a “regionalização da produção cultural, artística e jornalística”.
A chegada das TVs fechadas e a digitalização alteraram significativamente o sistema de transmissão dos jogos. Enquanto a televisão comercial aberta segue excluindo os times de fora do “eixo Rio-São Paulo” em suas transmissões, torcedores e torcedoras hoje possuem outros meios para acompanhar de longe o seu time de coração. Além das rádios comerciais que há décadas passaram a acompanhar os campeonatos locais, a TV fechada também surgiu como opção para quem pode pagar por uma assinatura. Nesse sentido, o “gatonet”, atualmente controlado sobretudo por milícias, virou opção de TV a cabo para quem prefere pagar menos e ter acesso aos conteúdos retransmitidos por esse sistema ilegal.
A partir da internet, surgem outros meios alternativos para as pessoas acompanharem seus times. A começar pela própria retransmissão clandestina que, atualmente, dispensa o cabo e vai parar direto na tela do computador ou celular. Não é difícil encontrar sites “piratas” exibindo partidas transmitidas “exclusivamente” por canais fechados. Em uma pesquisa rápida se chega a esses portais. Daí, bastam alguns cliques, fechar janelas e abas de pop-up, rezar para Nossa Senhora do Antivírus e pronto, já pode começar a torcer.
Para os amantes do rádio, a internet, através da web ou de aplicativos, alcança onde o sinal não chega. É possível ouvir qualquer rádio, em qualquer lugar do mundo. Nos últimos anos, surge ainda outra modalidade de rádio, normalmente associada ao YouTube. Diversos canais amadores ou dos próprios clubes contam com transmissão radiofônica durante os jogos. Com a possibilidade de renda oriunda da plataforma e sem necessidade de concessão pública ou autorização, qualquer pessoa pode criar sua própria web-rádio e transmitir partidas em seu canal no YouTube. São diversas as transmissões em canais da plataforma de propriedade do Google (Grupo Alphabet), as quais muitas vezes utilizam uma imagem figurativa, enquanto o áudio traz a narração e os comentários sobre o jogo – ou mesmo com a exibição dos narradores, algo permitido e que não viola os direitos de imagem da partida.
As possibilidades da internet também têm estimulado as instituições públicas. Um bom exemplo vem do Norte do país, onde professores e estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Rondônia se organizaram para cobrir o campeonato estadual masculino. Além de produzirem um podcast e conteúdos para as redes sociais, a partir da cobertura dos clubes que disputaram o campeonato rondoniense, o grupo vinculado ao projeto de extensão “Deu Bera” também narrou as principais partidas do torneio. Na final, o estudante Davi Rodrigues era o único repórter da capital cobrindo a decisão vencida pelo Porto Velho.
O sucesso do projeto fez com que o “Deu Bera” ampliasse sua cobertura. As transmissões, realizadas via canal do YouTube, extrapolaram o campeonato estadual masculino e chegaram a outros torneios. O campeonato estadual feminino, o Rondoniense sub-20 e a participação de equipes do estado no campeonato brasileiro masculino da quarta divisão também tiveram partidas transmitidas pelo projeto.
Nas emissoras públicas que sobreviveram aos últimos anos de devastação, que resultou em fechamento de rádios e TVs públicas em diversos estados brasileiros, o futebol tem ganhado cada vez mais destaque. No Pará, a TV Cultura vem cobrindo os torneios locais e regionais, a exemplo da Copa Verde, cuja final vencida pelo Goiás sobre o Paysandu foi retransmitida para todo o país através da TV Brasil, emissora vinculada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC). No Espírito Santo, desde 2020 a TVE transmite todas as rodadas do campeonato estadual. Em 2021, a emissora pública foi a que mais transmitiu partidas de times locais em todo o país: um total de 51 jogos. O capixabão também pode ser acompanhado pela rádio pública Espírito Santo 1.160 AM.
Na Bahia, a TVE – TV Educativa apostou na transmissão do futebol para ampliar o alcance junto à sociedade. Desde 2016 a emissora pública vem se tornando “a casa do futebol baiano”, com transmissões exclusivas (na TV aberta e no canal do YouTube) do campeonato estadual masculino e feminino, além da série B do baianão masculino, dos torneios sub-15, sub-17 e sub-20, da Copa 2 de Julho e do Campeonato Intermunicipal, maior torneio amador entre seleções municipais do país. “Em muitas cidades da Bahia são as competições de futebol que mobilizam, aos finais de semana, milhares de famílias que frequentam os estádios em busca de lazer e entretenimento”, destaca o jornalista Flávio Gonçalves ao reforçar a importância do futebol para a formação cultural do país.
Flávio, que dirige o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb), responsável pela TVE e Rádio Educadora da Bahia, afirma que é papel da televisão pública construir uma programação com diversidade e representatividade, partindo dos interesses da sociedade. Ele ressalta que o futebol hoje tornou-se uma atividade global, com a participação de atletas baianos e brasileiros em diversos clubes do mundo e jogos transmitidos pela televisão ou internet. “Com isso, os cidadãos baianos têm acesso a clubes de outros países e ao longo do tempo constroem uma relação de ‘identidade’ com esses clubes que não têm nenhuma relação com a Bahia”, pontua o jornalista.
No “país do futebol”, o esporte mais popular do Brasil é uma marca da nossa cultura e constrói a nossa identidade desde o berço, desde quando o avô comunica à família: minha neta vai ser Vitória! Da mesma forma, a transmissão das partidas influencia diretamente nessa construção identitária, o que põe na roda diversas possibilidades de debate que perpassam o sistema público e privado de comunicação, assim como os métodos alternativos, legais e ilegais de transmissão, os oligopólios midiáticos, o direito à comunicação e os modelos de transmissão que permeiam todo o debate político e existencial que se rende numa mesa de bar quando se lança a um feirense com camisa do Al-Nassr de Cristiano Ronaldo a pergunta: quem nasce em Feira de Santana não deveria torcer pelo Bahia de Feira ou pelo Fluminense de Feira?
HERCOG, Alex Pegna. Do Fluminense de Feira ao Al-Nassr: modelos de transmissão de futebol e identidade dos torcedores brasileiros. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 2, 2023. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/do-fluminense-de-feira-ao-al-nassr-modelos-de-transmissao-de-futebol-e-identidade-dos-torcedores-brasileiros/
Observatório das Transmissões de Futebol © 2024 Todos os direitos reservados